domingo, 25 de março de 2012

Manuel de Barros, O poeta, Pretexto e Palavras... e ainda o “processo de criação”.




O poeta

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria 13 anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

In Ensaios fotográficos, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 47

Pretexto

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares, organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc. etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.

In O livro sobre nada, Rio de Janeiro: Record, 3a. ed., 1997, p. 7.

Palavras

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim de lugar? Foram as palavras pois que desestruturam a linguagem. E não eu.

In Ensaios fotográficos, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 57.


Qual é seu processo de criação?

Como quem lava no tanque dando porrada nas palavras. A escuma que restou no ralo vai ser boa para o começo. Depois é ir imitando os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma. As palavras de nascer adubam-se de nós. Então no meio da coisa pode saltar uma clave ou um rato. Daí a gente tem que trabalhar. O horizonte fica longe que nem se vê. Um horizonte pardo como os curdos. Também faz parte desse processo desarrumar a cartilha. Seduz-me reaprender a errar a língua. Eis um ledo obcídio meu.

In Gramática expositiva do chão, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990, p. 314.



 por 
 http://ler-e-escrever.blogspot.com.br/2007/06/manuel-de-barros-o-poeta-pretexto-e.html

Um comentário:

  1. Isso é mesmo uma preciosidade. A gente precisa ter os escritos do Manoel sempre em mãos pq são necessários, lúcidos, ricos, desconcertantes. Nos tiram do lugar de conforto e nos fazem voar alto. Uma beleza...

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